UMA
PROPOSTA DE INTERVENÇÃO CÍVICA
I.
Uma situação preocupante
Portugal
tem hoje um défice de reflexão e debate intelectual de
qualidade e com expressão escrita. É certo que o
número de conferências e colóquios de qualidade
aumentou significativamente na última década. Mas, não
existindo uma tribuna permanente que dê conta desse fluxo de
informação, ou existindo apenas tribunas
especializadas, a informação fica circunscrita a
públicos especializados que participam nas diversas
iniciativas. Por outro lado, ao nível da comunicação
social, não existe o hábito da reflexão e do
debate dos grandes temas de médio e longo prazo, para não
falar do baixo nível da programação televisiva.
Acresce
que a inexistência desta reflexão de fundo abre caminho
ao alastramento de um conjunto de preconceitos que, por não
serem confrontados com investigação e reflexão
sérias, tendem a dominar aquilo que Joseph Schumpeter designou
de «atmosfera intelectual».
Somos
tentados a dizer que esta «atmosfera intelectual» é
hoje dominada pelas inclinações «pós-modernas».
No centro das inclinações «pós-modernas»
está uma revolta contra a tradição da liberdade
ordeira, para usar a expressão consagrada por Emund Burke na
sua crítica da Revolução Francesa; uma revolta
«estética» contra a razão e a busca da
verdade, para usar a terminologia de Karl Popper; e uma revolta
contra a tradição liberal da «gratificação
diferida», - base de todo o investimento, do amadurecimento
das instituições, designadamente a família, e da
reforma sem revolução - em nome do império da
«gratificação instantânea». Não
deve ainda ser omitido o impulso «pós-moderno»
contra todos os padrões de comportamento, acusados uma vez
mais de serem meros preconceitos; a adopção de um
laicismo agressivo que procura ridicularizar e expulsar da esfera
pública todo e qualquer sentimento religioso, sobretudo quando
se trata da tradição judaico-cristã.
Sem ser
ainda alarmante, esta situação é preocupante. Na
ausência de reflexão sobre o médio e longo prazo,
o país fica impreparado para enfrentar os grandes desafios da
viragem do século e do milénio: o impacto da revolução
da informação e das biotecnologias, o desafio da
globalização, as grandes reformas do Estado Social -
designadamente no campo da saúde e da segurança social
-, os tremendos problemas do ensino, o magno problema da exclusão
social e de como voltar a criar mais oportunidades para todos, etc.
Finalmente, a própria questão Europeia tem sido
abordada sob um horizonte limitado, menosprezando frequentemente a
sua articulação com as grandes incógnitas do
mundo pós-Guerra Fria.
Se a
ausência desta reflexão nos deixa impreparados, o
alastramento do pós-modernismo deixa-nos francamente mal
preparados. Embora a mensagem relativista e subjectivista do
pós-modernismo seja feita em nome de uma liberdade radical,
ela na verdade corrói as bases da liberdade - que estão
sempre indissociavelmente ligadas ao sentido da responsabilidade
pessoal e a uma tradição moral substantiva, ainda que
plural, na qual assentam as sociedades demo-liberais do Oeste. Ao
proclamar a irrelevância ou arbitrariedade dos alicerces da
nossa liberdade ordeira - o racionalismo clássico de Atenas,
a tradição judaico-cristã e o racionalismo
moderno das luzes, sobretudo na sua versão moderada
anglo-americana, - o pós-modernismo empurra-nos, a nós
e às futuras gerações, para um abismo
existencial. A experiência deste terrível século
XX ensina-nos que a democracia nunca sobreviveu muito tempo ao «olhar
sobre o abismo».
A
situação atrás descrita a traços largos
não é exclusiva do nosso país. Mas, com o nosso
hábito de caminhar a contraciclo, o nosso clima intelectual
entusiama-se hoje com "novidades" pós-modernas que foram
postas á prova nas democracias mais maduras ao longo das
últimas três décadas. Devido a essa experiência,
que está exaustivamente estudada sobretudo em Inglaterra e nos
EUA, pode ser dito que a maré pós-moderna está
hoje em recuo, ou perante forte e fundamentada oposição
nesses países. O que é tremendamente preocupante é
que as consequências das modas hoje dominantes entre nós,
que são amplamente conhecidas e debatidas nos EUA e em
Inglaterra, são praticamente desconhecidas no nosso país.
A
esta dificuldade conjuntural é necessário acrescentar
uma dificuldade ainda mais séria e estrutural: a profunda
influência da cultura política francesa sobre as nossas
elites, e o profundo desconhecimento existente entre nós da
tradição política e intelectual anglo-americana.
Não é aqui o lugar para analisar este fenómeno
que remonta, pelo menos, ao século passado, e em que a chamada
«Geração de 1870» terá tido um papel
de relevo. Importa apenas recordar aquilo que Alexis de Tocqueville
observou: que a cultura política francesa é feita de
oposições radicais - aquilo que ele designou por
"conflito estéril entre o Antigo regime e a Revolução"
- que estão ausentes da tradição gradualista,
descentralizada e ordeira anglo-americana. Este contraste é
particularmente visível desde o choque entre os dois
Iluminismos do século XVIII. Enquanto o chamado Ilumisnismo
escocês, que influenciou fortemente a Revolução
Americana, era favorável ao senso comum, à empresa
privada, ao comércio livre, ao governo pequeno e limitado pela
lei, e à tradição moral e religiosa
judaico-cristã, o Iluminismo francês era quase o oposto:
ridicularizava o senso comum e entronizava os «filósofos»,
hostilizava a religião, desconfiava da empresa privada,
favorecia o proteccionismo e reclamava um governo forte "iluminado"
pelas certezas científicas. Finalmente, e não por
acidente, o Iluminismo francês apelava à igualdade,
enquanto o Iluminismo escocês - representado por David Hume,
Adam Smith e Edmund Burke, entre outros - apelava á promoção
de mais oportunidades leais para o maior número, ao auxílio
aos necessitados, e cingia a igualdade à igualdade perante a
lei, sublinhando a importância do mérito e do esforço
pessoal. Ainda hoje, é difícil exagerar a importância,
o alcance e as consequências, destas profundas diferenças.
No
entanto, esta breve descrição da situação
que vivemos ficaria seriamente distorcida se fosse omitido o facto de
na sociedade portuguesa, sobretudo nas famílias e nas
instituições civis, existirem fortes tradições
e convicções contrárias ao pós-modenismo.
Sentindo-se ofendidas pelo clima dominante estas tradições
e convicções hesitam no entanto em fazer-se ouvir por
lhes faltar uma expressão intelectual comum e articulada.
II.
Uma proposta de intervenção cívica
Face à
situação atrás descrita, pensamos que é
urgente criar um pólo de atracção intelectual
capaz de gerar as energias e apontar direcções para
gradualmente alterar a atmosfera intelectual dominante. Por alteração
da atmosfera dominante não entendemos a abolição
ou extinção das concepções atrás
delineadas - algumas das quais são modas passageiras, mas
outras parecem corresponder a profundas inclinações de
sectores significativos das sociedades modernas. Não nos custa
conviver com essas inclinações, com as quais gostamos
aliás de polemizar. Desta polémica, julgamos mesmo que
se origina uma estimável busca de esclarecimento, o qual é
sempre fruto do confronto pluralista e não do monismo
dogmático. O que actualmente se verifica, no entanto, é
a tendência para a hegemonização da nossa
atmosfera intelectual por um monismo dogmático que, em nome do
pluralismo, na verdade tenta excluir todos os pontos de vista que
contrariam o relativismo pós-moderno.
A
principal alteração da atmosfera intelectual que temos
em vista é, por isso, a criação de um polo de
atracção intelectual que faça frente ao actual
monismo dogmático.
Pensamos
que esse pólo de atracção intelectual deve ser
uma publicação de ideias - filosofia, política,
economia, defesa, administração e sociedade -
dedicada a um vasto público médio e superior, que
poderíamos talvez designar por «opinião pública
esclarecida». Embora com orientações bastante
diferentes, a «Seara Nova» e o «O Tempo e o Modo»
dão uma imagem do que temos em vista. A revista «Risco»
é outra referência para o que temos em mente. Mas é
importante frisar que, com a orientação intelectual que
aqui é proposta, a nova revista não será
sobretudo uma revista para intelectuais, no sentido francês da
expressão.
Em
termos gerais, a revista deveria assumir sem complexos a filosofia
pluralista subjacente às democracias ocidentais: Estado de
Direito, governo representativo, economia de mercado e empresa livre,
rede de segurança para todos (ou seja, apoio aos que precisam
e merecem). Mais concretamente, a revista deveria privilegiar os
pontos de vista que defendem a disciplina orçamental do
Estado, uma estrutura fiscal leve e estimuladora do investimento, do
trabalho e da propriedade, numa palavra, da iniciativa civil. Sem
negar o papel interventor do Estado, será claro que este deve
ser sempre supletivo e respeitador do princípio da
subsidariedade.
No
plano externo, a revista assumiria com clareza os compromissos
fundamentais da democracia portuguesa: Aliança Atlântica,
União Europeia, Comunidade dos Povos e Países de Língua
Portuguesa.
Em
termos políticos, a revista não teria uma orientação
particular. Ela defenir-se-ia sobretudo por uma atitude,
em que a oposição ao relativismo pós-moderno
será um alicerce fundamental. Quer em função da
dignidade da pessoa humana, quer em função da própria
sobrevivência das sociedades livres, esta atitude assume a
afirmação da substantividade dos valores.
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